Ministério da Educação

Dicas-L: Educação e Tecnologia

sábado, 23 de maio de 2009

VIOLÊNCIA MIMÉTICA, ADULTOS, CRIANÇAS, ANIMAIS

É de suma importância a abordagem que defensores dos animais procuram dar, hoje, à questão da violência contra animais, como definidora da matriz cognitiva e moral, que passa a ser ativada em todas as formas de relação de seres humanos com quaisquer outros animais, algo que desde Pitágoras, passando pelos judeus, cristãos, budistas, hinduístas, e, finalmente, pela investigação das ciências comportamentais, vem sendo confirmado como uma questão relevante no trato da origem, aprendizado e expressão de formas humanas violentas de tratar outros animais, humanos e não-humanos.

A questão, porém, não deve ser vista como problemática ou emblemática apenas para as crianças que praticam a violência, ou para aquelas que, na infância, tendo sofrido violência no âmbito da família, sofrem uma ruptura na sua própria personalidade moral, ao perderem o vínculo de confiança em relação a outros seres vivos em condições privilegiadas para uso da força ou para violentar os desprotegidos ou fragilizados.

Lembro, na oportunidade, depois de muito ter aprendido com o médico alemão Tilman FURNISS, que escreveu 'Abuso Sexual da Criança', que não apenas as crianças que praticam abuso contra os animais formam em si mesmas uma matriz cognitiva para depois praticarem abusos contra humanos. É bom que seja publicamente enfatizado, que toda criança, exposta como testemunha de atos de violência contra animais, torna-se aprendiz da violência, ainda que no momento da cena contra o animal essa criança não tenha tomado parte ativa no ato.

O ser humano aprende não apenas fazendo, mas, também, e principalmente, observando e imitando. Nesse sentido, tanto faz se a criança é vítima direta de violência praticada contra ela por humanos adultos, ou se ela é testemunha de violência de alguma forma de violência sistemática, praticada contra outros seres humanos e não-humanos à sua volta, com os quais ela se identifica em seus aspectos de fragilidade e impotência. Todas as crianças, submetidas diretamente a atos de violência, ou testemunhas impotentes de violência, tornam-se sabedoras desse fazer, e portadoras da matriz de violência que pode ser empregue alguma vez, contra humanos ou contra outros animais.

O mesmo deve ser levado em conta, quando se faz a campanha contra a violência infantil, quando as vítimas são animais de outras espécies. As crianças que praticam essa forma de violência já têm a matriz cognitiva e moral de inflição de sofrimento a outros seres vivos fragilizados e impotentes. Só por isso já merecem ser amparadas com um tratamento pedagógico e psicológico especial, para que abandonem o gozo de causar dor e sofrimento a seres em condições fragilizadas e vulneráveis a atos de hostilidades, praticados por outros em condições favoráveis ao uso da força e abuso de poder. Por outro lado, é bom que fique bem claro que os atos infantis de violência, contra outras crianças ou contra animais, revela que essa criança já testemunhou atos de violência, ou, possivelmente, já os sofreu no próprio corpo. Ao praticar a viôlência, uma criança "relata" para nós o que já sofreu ou o que já viu praticar em sua presença. Cuidar, pois, dessas crianças, inclui cuidar do entorno familiar, escolar e social no qual se forma sua matriz cognitiva moral.

Mas, ainda no que diz respeito ao universo infantil, devemos ter em conta que o fato de uma criança praticar abusos contra os animais, para além de fomentar nela mesma a matriz de hostilidade e agressividade contra seres fragilizados, se ela o faz na presença de outras crianças, e, se, por sua vez, essas crianças sentirem medo do que estão a presenciar, o efeito danoso de tais práticas não se faz sentir apenas nos animais. As crianças, aterrorizadas por presenciarem, impotentes, atos de crueldade contra outros bichos, têm abalada, em sua própria estrutura emocional e moral, a matriz cognitiva e ética da confiança nos demais seres vivos, o que as pode levar a concluir que a única maneira de escapar da violência e de não sofrer, é tornar-se violentas também. Nesse sentido, é bom que saibamos que a prática da violência, por parte de uma criança, pode revelar duas coisas: a primeira, que essa criança já sofreu ou já testemunhou a violência. A segunda, que essa criança já chegou a uma conclusão: a de que a prática de tais atos a protege, pois ao mostrar-se violenta, agressiva e bruta, assusta aqueles que eventualmente a poderiam violentar. Esses dois "recados" nos são dados na violência infantil contra os animais.

Por essa razão, o ato de testemunhar, impotente, atos de violência, derroca no sujeito moral, fragilizado por sua condição vulnerável, a estrutura moral necessária para a construção de uma personalidade confiante e desejosa de fazer o bem.

Por outro lado, e isso também deve ser levado em conta nas campanhas desencadeadas pelo fim da violência contra os animais, a violência praticada por adultos contra os animais, e falo aqui da violência institucionalizada do mercado de produção da carne, dos cosméticos, dos artefatos derivados de animais, do aprisionamento perpétuo de animais em circos e zoológicos, e de todas as demais formas de expropriação da liberdade e da dignidade dos animais, cultivadas em nossa sociedade sem o menor pudor, também formam, ou melhor, deformam a matriz cognitiva e moral que constitui o sujeito como sujeito ético, capaz de praticar o bem em favor daqueles que se encontram em condições menos favoráveis.

Assim, se expomos as crianças a toda sorte de violência que nós, adultos, praticamos, ou que permitimos que seja praticada sem nosso protesto, contra animais, crianças ou quaisquer outros sujeitos vivos em condições fragilizadas de existência, formamos nessas crianças a matriz cognitiva que as tornará insensíveis ao sofrimento alheio, e, na pior das hipóteses, aptas a o infligirem sem o menor pudor a outros seres vivos sensíveis.

Do mesmo modo como se cuida, hoje, após o livro de Tilman Furniss, de dar assistência moral adequada, não apenas às crianças que sofrem abuso sexual no âmbito da família, mas, também, a todas as outras crianças que, porventura, tenham sido testemunhas aterrorizadas da violência sistemática praticada contra aquelas, também devemos dar atenção especial, hoje, às crianças que sofrem, na condição de testemunhas impotentes, a experiência de presenciar a violência praticada por nossa sociedade contra todas as demais espécies animais, em todas as formas tradicionais, com as quais parece que nos temos acostumados.

Se quisermos eliminar a matriz cognitiva da violência, nas crianças e nos adultos, devemos dar apoio psicológico, pedagógico e ético a todos os seres humanos que, de forma direta ou indireta, têm presenciado práticas sistemáticas de violência, por parte de outros membros da nossa sociedade.

Conforme o afirmo acima, desde Pitágoras, passando pela tradição judaica mais antiga, sabe-se que nada que o ser humano pratica o deixa incólume. Nosso ser resulta da prática repetida de certas ações, como bem o aponta Aristóteles em seu livro Ética a Nicômaco, em outras palavras, nossa primeira natureza, a biológica, é transformada através do nosso próprio investimento, numa certa forma "específica" de ser humano, que se define pela repetição de ações boas e pela eliminação de atos que possam causar o mal. E, por vezes, essa forma de ser humano, que repetimos com nossas práticas, indicam de fato que ainda estamos bem longe de nos tornarmos naquilo que dizemos gostaríamos de ser. Ou será que o ideal de "humanos" que apregoamos para nos elevar sobre os demais seres vivos, comporta as práticas das quais francamente gostaríamos de livrar nossa natureza?

Sônia T. Felipe
Núcleo de Ética Prática/UFSC
Florianópolis, SC - Brasil, 8/6/2004
(autorizado para divulgar na página do É O BICHO e de outros sites defensores dos animais)